Por Tania Amaro
As cidades serão sempre um desafio devido ao imaginário de vícios e virtudes que elas impõem e, dessa forma, podem ser vistas e analisadas a partir daquilo que representam para cada indivíduo. Com Duque de Caxias, não é diferente. As percepções que se tem dessa cidade, dependendo de quem a olha, podem ser bastante divergentes ou se mesclar.
Silbert dos Santos Lemos e Francisco Barboza Leite viveram em Duque de Caxias entre as décadas de 1950 e 1990 e suas obras nos trazem a possibilidade de percepção do cotidiano da cidade a partir de estilos de escrita diferentes: Leite se aproxima da poética, Lemos da prosa. Mas ambos estabeleceram uma relação de sujeitos, no seu próprio tempo, vivendo como cidadãos comuns no cenário urbano.
LEIA+
+ DUQUE DE CAXIAS: DE DISTRITO A MUNICÍPIO
+ DUQUE DE CAXIAS: EMANCIPAÇÃO POLÍTICO-ADMINISTRATIVA
Santos Lemos
Silbert dos Santos Lemos nasceu no bairro da Tijuca, Rio de Janeiro, no dia 19 de agosto de 1928, e faleceu em Duque de Caxias no mês de outubro de 1987, devido a complicações com diabetes e enfisema pulmonar. Foi repórter de polícia, colunista social e delegado. Santos Lemos escreveu Sangue no 311, Negro Sabará e Os Donos da Cidade, três livros que fazem parte da coleção “Crimes que abalaram Caxias”, publicados, respectivamente, em 1967, 1977 e 1980, nos quais relatou as relações ocorridas no submundo duquecaxiense entre as décadas de 1950 e fins de 1970, contextualizando a cidade a partir da violência, do jogo e da prostituição, além de descrever a paisagem urbana do município, demarcando-a a partir da marginalidade e do poder político.
Foi um dos fundadores da Academia Duquecaxiense de Letras e Artes e participou da União Brasileira de Trovadores e da Sociedade de Cultura Artística de Duque de Caxias. Chegou a Duque de Caxias no ano de 1953, para substituir o repórter policial Barreira como correspondente de jornais do Rio de Janeiro, A Notícia e O Dia. Como repórter policial da imprensa carioca destacado à Delegacia de Duque de Caxias, atuou durante mais de 15 anos como correspondente de diversos jornais do Rio de Janeiro, entre eles A Notícia, O Dia, Diário da Noite e O Globo.
Formou-se em Direito na Universidade Federal Fluminense e foi aprovado no primeiro concurso para delegado do estado do Rio de Janeiro logo após o golpe de 1964; sendo o primeiro colocado nesse concurso, escolheu Angra dos Reis para trabalhar. Posteriormente, atuou em delegacias de vários municípios, entre eles Paraty, Bom Jesus de Itabapoana, Mangaratiba, Nova Iguaçu e Casemiro de Abreu. A última delegacia sob seu comando foi a 29ª DP, do bairro de Madureira, Rio de Janeiro. No município de Duque de Caxias, ocupou o cargo de titular da delegacia de Imbariê, por volta de 1972-1973. Sua atuação como delegado sempre esteve aliada ao caráter contestador, o que se refletia nas constantes mudanças de nomeação.
Com um lado escritor-repórter que sempre falava mais forte, Lemos foi proprietário do jornal Caxias Repórter, escrevendo matérias tanto de cunho social, como policial; e, ainda produzia o Caxias Recortes, selecionando notícias em revistas e jornais e elaborando álbuns de clippings que, depois, repassava às pessoas interessadas. Lemos sempre registrava suas opiniões: escreveu para o jornal de Tenório Cavalcanti, Luta Democrática; produzia matérias não assinadas para O Globo e O Dia; e, na Folha da Cidade escrevia sob o pseudônimo de João Possolo. Como colunista social, escreveu para a revista Vida Doméstica e mantinha coluna no jornal Folha de Caxias (Folha da Cidade a partir de julho de 1956), denominada Caxias Society, desde 04 de setembro de 1955 até 26 de janeiro de 1958.
Nas obras Sangue no 311, Negro Sabará e Os Donos da Cidade, Santos Lemos relatou as relações ocorridas no “submundo duquecaxiense”, durante as décadas de 1950 a fins de 1970, no qual Lemos conheceu os caminhos da pobreza, do preconceito e da violência, confrontando-se a marginalidade com a luta dos excluídos por melhores condições de vida. O estilo jornalístico direto e o caráter testemunhal de seu texto permitem perceber, com clareza, os limites por onde se lutava para sobreviver e como essas experiências coletivas construíam e operavam um segmento social marcado pela miséria, pelo vício e pela violência. Através da leitura de seus escritos, podemos vislumbrar que Santos Lemos foi se tornando cada vez mais cronista e menos repórter, escrevendo textos que criticavam aspectos da sociedade duquecaxiense. Lemos foi o jornalista, o narrador, o cronista que escreveu o que viu e viveu, percebeu e sentiu.
Barboza Leite
Por outro lado, encontramos Francisco Barboza Leite que, no dia 22 de dezembro de 1996, falecia na cidade na qual decidiu viver desde a década de 1950. Cidade que, através de seus escritos, demonstra amar, nos seus afetos e dramas cotidianos. Em suas obras, Barboza Leite abre espaço para o discurso sobre a realidade social dos trabalhadores, dos excluídos, dos marginalizados, das lutas por conquistar o espaço aonde migrantes, como ele, vieram se instalar. A seu modo, conta a história de Duque de Caxias, lançando seus olhares sobre sua contemporaneidade, fazendo com que suas personagens reais, os habitantes, possam ser lidas, interpretadas e entendidas.
Barboza Leite tinha origem nordestina e partiu de sua terra em busca de novos horizontes. Filho de Pedro Pereira Leite e de Francisca Barboza Leite, Francisco nasceu na cidade de Uruoca, no dia 20 de março de 1920, no Ceará. Durante sua infância, passava seus dias junto ao pai, na estação de trem onde este era telegrafista. O menino Francisco auxiliava seu pai nas tarefas daquela profissão desde cedo: passava mensagens, numerava mercadorias para o embarque, lia ou escrevia cartas para os sertanejos sem letramento. O pai de Barboza Leite era também um hábil artesão, ensinando ao filho sua arte e as primeiras letras, e Francisco aproveitava as oportunidades que tinha de selecionar entre as encomendas, na estação, revistas que eram lidas antes de chegar aos seus donos e mostravam a ele um mundo muito diferente do seu.
A obra de Francisco de Barboza Leite está repleta de representações de suas memórias de infância, a qual rememora, concedendo-nos abertura para compreender os sentimentos de um jovem em busca de um novo mundo: “sempre que um trem passava, o menininho tinha inveja das pessoas que viajavam. Ainda chegaria a sua vez de viajar também, de sair daquele lugar semimorto, onde o trabalho era escasso e o dinheiro não circulava”.
Assim, na busca de novos horizontes e do mundo que enxergara nos periódicos a que teve acesso, Barboza Leite saiu de sua terra natal em 1936, dirigindo-se para Fortaleza com o objetivo de garantir o sustento e continuidade dos estudos. Passando antes por Recife, chegou ao Rio de Janeiro no ano de 1947, indo trabalhar no Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Ali conheceu outro Francisco, Solano Trindade que o apresentou a Duque de Caxias, localidade onde se instalou no ano de 1952, decidindo viver com sua família e colaborando intensamente nos campos da cultura e educação. Para esta cidade, trouxe sua esposa, Isa da Silva Leite, que conheceu em Fortaleza e lá tiveram os primeiros seis filhos: Francisco Junior, Cesar Augusto, José Lincoln, Antônio Lúcio, Pedro Marcílio e Raimundo Nonato. Na cidade que escolheu viver, nasceram os demais: Ana Fátima, Maria da Graça, João Evangelista e Rosa Cristina.
Com os filhos casados, a família Barboza Leite constituiu-se de onze netos e oito netas, sem contar os bisnetos. Flavia Andreia Paes Leite, a primeira das netas, acredita que o avô abriu mão da militância política, optando por não ir para embates, mas se engajou na militância cultural, sempre incentivando novos artistas. A militância de Francisco Barboza Leite sempre primou pela descoberta e incentivo a novos talentos e sua linguagem era a poesia para enxergar o belo.
Um artista múltiplo: pintor, desenhista, escultor, poeta, escritor, jornalista, ensaísta, compositor, cenógrafo, ator, produtor teatral, cineasta, além de professor em variadas áreas – educação, geografia, desenho –, Barboza Leite buscou relacionar suas obras à estética e arte, e seus escritos revelam a visão que o artista tem da sociedade, dialogando com a cidade, o espaço urbano, lugares de memória e espaços de saber. Era um artista que percebia o processo de formação do espaço, de moldar o lugar, da construção da história de Duque de Caxias como obra de muitos que por ela passaram e habitaram, e de muitos saberes que se conectaram:
“vieram, então, clérigos, doutores, poetas / ampliar, das gentes, o campo semeado de anseios… / vieram instalar-se nestas glebas de argila e saibro, / além do braço do lavrador, o punho do professor…/ mãos para o trabalho… / mãos para dar ou recolher, para ferir ou perdoar. / E, essas mãos começaram a conduzir rimas e rumos, / removendo obstáculos, remarcando espaços, renovando vias… / E, essas mãos continuam… / encaminhando a vida aos vivos, / em arte ou sonho”.
Testemunhas de seu tempo, Santos Lemos e Barboza Leite refletiram acerca do cotidiano da cidade, enxergando-a como a principal personagem na vida de mulheres e homens que transitam por ela, guardam suas memórias e expressam suas representações como em um palco cotidiano de vida, lutas e sensibilidades.

A professora Tania Amaro é Diretora do Instituto Histórico da Câmara Municipal de Duque de Caxias. Tem pós-doutorado em História pela UFRRJ; é Doutora em Humanidades, Culturas e Artes e Mestre em Letras e Ciências Humanas pela Unigranrio; e Licenciada e Bacharel em História pela UERJ, com especialização em História das Relações Internacionais pela mesma Universidade. É Docente da rede estadual de ensino e autora de vários artigos e livros relacionados à História Local e Regional. Integra como historiadora a Comissão para os Bens Culturais e Artes Sacras da Diocese de Duque de Caxias.