por Jackie Marins
Trancados em casa de novo, entre assustados e exaustos do isolamento, assistindo as notícias da semana com aumento acelerado de mortes por covid-19 no Brasil, eliminação do BBB 21 por discriminação racial, prisão de vereador supostamente torturador e assassino de criancinha.
Como escrever algo que possa fazer frente a tantas realidades intensas e desconcertantes que fazem da vida uma experiência absolutamente ímpar e impossível de ser capturada em toda sua plenitude e complexidade, seja pela arte, pela ciência ou qualquer outro meio?
Como compartilhar reflexões sobre a prática do parlamento em suas relações institucionais com os cidadãos, seus integrantes e demais órgãos e entidades do sistema público de administração do estado?
Nesse enrolado novelo, prosseguindo num processo reflexivo sobre a práxis legislativa e nas demais instituições, pode-se partir de uma premissa básica única, comum às três situações apontadas acima, por mais que pareçam ser totalmente distintas entre elas.
Em alguma medida, o aumento de mortes por covid-19, a discriminação racial não encoberta no BBB21 e a prisão do vereador tem por trás de si algum traço de política pública debatida, analisada e efetivadas pelas estruturas do poder público.
O enfrentamento e o combate à pandemia passam pelas políticas de saúde implementadas nas três esferas de governo, em suas respectivas competências e responsabilidades no que se refere às ações a serem adotadas.
O capítulo II da Constituição Federal trata da Seguridade Social, que é sustentada por um tripé composto pela saúde, a previdência social, e a assistência social, conforme descrito no artigo 194, cabendo ao poder público organizá-la com base nos princípios constitucionais, bem como seu financiamento fica a cargo de toda a sociedade de forma direta e indireta, mediante recursos orçamentários da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios e de contribuições sociais dos empregadores e dos trabalhadores, entre outras fontes de custeio.
Além do que, todos os detalhes adicionais precisam ser analisados e aprovados pelas casas parlamentares de todo o país, na Câmara dos Deputados e o Senado, nas Assembleias Legislativas e nas Câmaras de Vereadores, conforme a esfera governamental a que se destinam as medidas.
São medidas, planos e projetos emissários de políticas públicas voltadas para, no caso da Covid-19, fazer frente aos problemas coletivos gerados pela pandemia e, nesse caso, aciona-se a estrutura da seguridade social, com vacinas e leitos hospitalares, medidas sanitárias ou de saúde; da previdência social, com os afastamentos de trabalhadores em virtude da doença, por exemplo; e da assistência social, no provimento do mínimo necessário para a subsistência das pessoas.
Na apreciação de proposições que enderecem políticas públicas destinadas a sanar problemas em qualquer uma das três áreas constitutivas da seguridade social, estão sendo abordadas as políticas sociais.
E a covid-19 exige uma ampla gama de medidas para combate direto de seus efeitos na saúde coletiva, mas, também, medidas sociais destinadas a mitigar os efeitos colaterais das ações voltadas para a prevenção do contágio, especialmente num país em que o trabalho informal é realidade para uma parcela significativa da população e as micro e pequenas empresas respondem por uma fatia também relevante do setor produtivo.
Na televisiva atração BBB21 (Big Brother Brasil), na invejada interação social de personagens confinados a dias suficientemente longos que permitem inclusive aglomerações no sofá, abraços e proximidade física a que nós, reles mortais, por hora, não nos podemos permitir, houve a eliminação de um participante que reiteradamente fez falas consideradas machistas ou discriminatórias, daquelas que são corriqueiras em nossa sociedade.
Evento que acendeu a briga “dentro da casa mais vigiada do Brasil”, contra o racismo estruturalmente constitutivo de nossa sociedade, ainda que muitos de nós nem se dê conta de tal fato, pois que fomos educados com a naturalização do preconceito para com as desigualdades produzidas em nossas relações sociais assimétricas, seja pela diferença de constituição física em razão de deficiências físicas ou mentais, pela cor da pele, da etnia ou da procedência nacional, de gênero, ou qualquer outro fator identitário a nos distinguir.
O despertar da consciência das diferenças, embora seja consequência de ativismo social intenso e ininterrupto, é também resultado de políticas públicas que objetivam sanar as consequências de discriminações e preconceitos, especialmente no que se refere a gênero e raça.
O ativista do Movimento Negro, Caó – Carlos Alberto Oliveira dos Santos, no exercício do mandato de deputado federal foi autor do projeto que culminou com a Lei 7.716, de 05 de janeiro de 1989, que define os crimes que resultam do preconceito de raça ou cor.
E, eleito para uma cadeira na Assembleia Nacional Constituinte, foi responsável pela inclusão do dispositivo constitucional que define a prática do racismo como crime inafiançável e imprescritível.
Tanto o dispositivo constitucional quanto a legislação federal mencionada acima são resultados de participação e pressão social por inclusão de visões de mundo distintas das que dominaram e ainda são preponderantes no mundo contemporâneo e no mundo das leis. E, sem medo de errar, constituíram objetos de longos e acalorados debates no curso de suas respectivas tramitações, como é de se esperar no regime democrático vigente.
A respeito da tragédia do menino Henry, além de se lamentar profundamente os próprios fatos, há que se considerar o sistema de proteção social sob o qual as crianças devem estar protegidas e amparadas. Destacando-se a existência de tal previsão no ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente sobre essa proteção e amparo.
A Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 – ECA, é portadora de diretrizes para políticas públicas de proteção da criança e do adolescente, segundo o qual são assegurados a eles, todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana e proteção integral, que lhes faculte desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social em condições de liberdade e dignidade.
No ECA consta como dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos à vida. Primordial direito a ser garantido por todos, independendo o fato de se tratar de criança conhecida ou não.
E, ainda que não tenha a pretensão de julgar os envolvidos na tragédia, como sociedade humana, nós falhamos. E continuamos a falhar todas as vezes que uma criança, qualquer criança, sofre abuso ou maus-tratos sem que tomemos uma atitude ao ter conhecimento do fato.
Sobre o personagem dessa história trágica, que pertence aos quadros de representantes da Casa Legislativa da capital do Estado, há que se considerar a questão da imunidade parlamentar a que os mandatários de cargo eletivo fazem jus. Sem, no entanto, perder de vista o fato de que a prerrogativa em questão diz respeito, expressamente, à inviolabilidade por opiniões, palavras e votos no exercício do mandato (artigo 345, inciso IV da Constituição do Estado do Rio de Janeiro).
Combinados, os acontecimentos da semana, por mais tristes que sejam, nos remetem à importância do papel das instituições do estado na garantia dos direitos individuais frente á execução das ações voltadas para o coletivo que as políticas públicas ensejam.
E por não haver nenhuma graça em nenhum deles, não temos brincadeiras possíveis e analogias com o mundo da bola, dos carros ou da vida alegre da infância e das atividades que nos trazem prazer e satisfação com sua simples lembrança.
Ouso tão somente propor envolver nossa esfera mental na simples lembrança do papel de parede azul de nuvens brancas, do desenho animado Toy Story, com a música tema de sua personagem principal ao fundo: “Amigo estou aqui”.

Jackeline Marins é Mestranda em Políticas Sociais, na Universidade Federal Fluminense (UFF), Pedagoga, especialista em Administração Pública, pela FGV-Rio, Especialista do Legislativo estadual e a colaboradora do BAIXADA POLÍTICA aos sábados.