Quiva e Laiá: conheça o lado indígena da história de Itaguaí

Por Isabelle Brenda

Vocês já ouviram falar de Quiva e Laiá? Já adianto que essa história virou enredo da Escola de Samba Unidos da Tijuca (1971) e da Mocidade do Porto (2022), foi adaptada para o teatro, foi registrada em livros e dá nome a ruas de Itaguaí. Sobretudo, Quiva e Laiá junto com a aldeia dos Itingas marcam a cultura histórica de Itaguaí. Para quem ainda não conhece, vem comigo!

Antes dou um aviso: ao utilizarmos uma lenda como fonte histórica, devemos ter em mente que elas podem ser definidas como narrativas orais que estão entre fantasia e realidade. Mas, este artigo não tem como objetivo diferenciar o que é real do que é imaginário, isto seria uma visão cientificista da história. Quando utilizamos as narrativas de outras pessoas em busca de “fatos” corremos um sério risco de não entendermos sua mensagem ou significado. Portanto, a lenda de Quiva e Laiá precisa ser entendida como parte da tradição histórica do município de Itaguaí, e, consequentemente, da Baixada Fluminense.

Conhecendo a Lenda

Existem muitas versões da lenda de Quiva e Laiá, mas optei por trazer a feita por Byron Torres de Freitas e Tancredo da Silva Pinto em 1969. Vamos nessa!

Em 1670, cerca de 400 índios vindos do território do Espírito Santo são trazidos por três padres jesuítas: Nóbrega, Cruz e outro cujo nome se perdeu para o território que conhecemos como Itaguaí. Para a sede da aldeia, escolheram o morro denominado “Cabeça Seca”, situado entre os rios Itingaçu e entre o monte mais alto ao Norte e ao mar ao Sul.

A sede da Aldeia de Itinga foi estabelecida naquele mesmo dia, fincaram uma cruz, onde ainda hoje resplandece a Igreja de São Francisco Xavier (esta igreja está lá até os dias atuais!). 

Foto: Reprodução Prefeitura de Itaguaí

Após o estabelecimento da sede, estava na hora de realizar uma importante cerimônia para os indígenas: a escolha do chefe da tribo e de sua companheira. Venceu o índio mais forte e audaz, Quiva, e a índia mais bela e jovem, Laiá. Após as solenidades de batismo da terra realizadas pelos padres e pelo novo casal, Quiva e Laiá se ausentaram da tribo por onze sóis e onze luas, percorrendo as terras que haviam sido doadas.

         Assim subiram pela margem esquerda do rio Itingaçu, foram até o alto do Pouso Frio, a 1.036 metros de altitude, quebraram para a direita, chegaram até as nascentes do rio dos Macacos, desceram pela margem direita até o rio Guandu, daí até a margem direita do rio Guandu-Mirim. Voltaram para a direita até a margem esquerda do rio Itaguaí, desceram em direção ao mar, passando para as ilhas de Itapuca, Itapuca Poronga, Socó Mirim e Sapiavera. Daí regressaram à foz do rio Itingaçu, demarcando para o atual Município de Itaguaí a área de 725 km².

         Em sua volta, o casal foi recebido com grandes festejos. Laiá narrava as peripécias da longa viagem quando chega uma sentinela anunciando que homens brancos e maus estavam invadindo as terras da aldeia. Então, pela primeira vez, Quiva lança seu grito de guerra – Itaguaí!

         Imediatamente, os guerreiros da aldeia partem ao encontro dos invasores travando uma feroz batalha às margens do rio Itaguaí durante dois dias. Aos invasores só resta a retirada após constatarem que seriam derrotados. Quiva os persegue até a Fazenda de Santa Cruz, cercada pelos indígenas.

         Nesse ínterim, chega um emissário da tribo, comunicando que Laiá estava a beira da morte. Quiva levanta o cerco e regressa à aldeia ao encontro de sua amada, que se encontrava desmaiada. O guerreiro ordena ao pajé que salve a moça. Então o pajé falou:

         ? Laiá está envenenada. Para salvá-la, é preciso que um índio ou uma índia beba o sangue dela com uma mistura com uma erva que conheço. Quando ele ou ela se sentir tonto, tem de rasgar uma veia para dar seu sangue, de mistura com outra erva, para Laiá beber. Laiá ficará boa, mas quem beber seu sangue morrerá.

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         Sem pensar duas vezes, Quiva se prontifica para o sacrifício. Após realizar o que o pajé instruiu, Quiva tomba morto ao solo, essa é a despedida do herói. Minutos depois Laiá desperta, já reestabelecida. Contam para ela tudo o que aconteceu, na sequência ela abraça seu amado, levanta-se, entra na mata à volta com uma braçada de papoulas brancas para cobrir o corpo de Quiva. Depois, entoa um cântico à Natureza e promete se guardar para sempre.

         Laia despede-se de toda a tribo e foge para a mata. Todos tentam detê-la mas o pajé intervém dizendo:

         ? Deixem que Laiá cumpra o seu destino. Quando estas flores se tornarem da cor da flor do maracujá, Laiá morrerá!

         Ao passar da noite e com o término dos rituais do funeral de Quiva, veio a confirmação da morte de Laiá. E o pajé falou pela última vez:

?Morto Quiva, morta Laiá. Não mais existirá a tribo dos Itingas. Brancos maus a invadirão, destroçarão tudo, matarão todos os índios. Só daqui a muitos sóis e muitas luas será cantada a história da tribo dos Itingas.

Após a profecia dos pajé os indígenas ficaram atemorizados e dispersaram-se pela mata. Acontece que no combate de Quiva com os invasores, um indígena de apenas 10 anos de idade ficara ferido e fora resgatado, tratado e educado pela família Souto Mayor Rendon. Este jovem Itinga recebeu o nome de José Pires Tavares. Quando completou trinta anos sentiu saudade de sua terra e recebeu a permissão das autoridades de reestabelecer a sua tribo.

A aldeia prosperava, José Pires Tavares já havia casado com uma índia e tinha uma filha quando começaram os rumores de que o pessoal da Fazenda Santa Cruz tramava, mais uma vez, invadir as terras da aldeia e trucidar seus habitantes. Era hora de ir a luta mais uma vez.

José Pires Tavares vende suas posses, atravessa para São Paulo a pé, chega à Bahia e de lá embarca rumo a Portugal. Seu objetivo era receber uma carta de proteção da rainha Dona Maria I aos índios da Aldeia de Itinga. Ele é recebido no Paço Real e consegue a proteção.

Entretanto, na sua ausência, cumpria-se a profecia do pajé. Em uma noite, os indígenas são surpreendidos e uma verdadeira chacina acontece. Os bárbaros invasores não respeitam nem sexo nem idade, não restou nada e nem ninguém da aldeia.

Quando José Pires Tavares regressou de Portugal, não encontrou mais nada da antiga Aldeia dos Itingas. Seus amigos, esposa e filha haviam sido pegos durante a invasão. Profundamente abalado pela tremenda injustiça, deixou-se morrer de inanição, de fome e sede. Assim foi extinta a tribo dos Itingas.

Ufa! Que longa e trágica história. Vocês já conheciam?

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Lendas geralmente são entendidas como narrativas que estão entre o verdadeiro, o falso e o fictício, por isso a narrativa de Quiva e Laiá aparece como lenda nas falas dos moradores de Itaguaí. No entanto, alguns autores nos alertam das limitações de utilizarmos o termo lenda para nos referirmos às narrativas indígenas de cunho ficcional. Segundo a professora e pesquisadora Maria da Penha da Silva “quando chamamos de ‘lendas’ as narrativas dos ou sobre os povos indígenas, ou outros grupos de ‘tradição’ oral, a história desses povos é reduzida à folclorização, de forma que não são validadas como conhecimentos sócio-históricos”.

Em um sentido estrito, a lenda de Quiva e Laiá não é uma narrativa indígena, pois é contada pela população não-indígena de Itaguaí. Mas, como lemos acima, trata-se de uma história protagonizada por um casal de indígenas e que narra os acontecimentos da aldeia de Itaguaí. O que eu quero é que não enxerguemos a dita lenda apenas como uma narrativa fantasiosa e ilusória. Reconhecemos que há frutíferas possibilidades de se reconhecer aspectos sócio-históricos no hibridismo envolvendo ficção e realidade.

A história de Quiva e Laiá, enquanto uma narrativa ligada à memória sobre a origem da cidade de Itaguaí é perfeitamente apta para articular passado, presente e futuro. O relato das luta dos indígenas no contexto do fim da aldeia dos Itingas é capaz de dar relevância à luta dos atuais indígenas pela posse das suas terras e também pode influenciar a configuração do futuro dos povos indígenas na Baixada Fluminense, através do estabelecimento de uma empatia entre aqueles que ouvem a lenda, e os povos indígenas que lutam pelo reconhecimento de suas identidades.

É importante ressaltar que o Censo Demográfico de 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostrou que 4.832 das 5.570 cidades brasileiras têm moradores indígenas, o que representa 86,7% do total de cidades do país.

Unidos da Tijuca – 1971

Quiva e Laiá
(Jorge Machado)

Itaguaí, se torna uma cidade tradicional
Surgiu no sul do país
Hoje grande parque industrial


Caminha a passos largos para o campo cultural
Contemplando o clima tropical


Itaguaí, escolhido por Pedro I imperador
Para seu romance de amor
Com a senhora Marquesa de Santos
Dom João VI
Magnânimo monarca
À elevou categoria de cidade


Linda é sua colônia de pesca
Os pescadores desafiam a própria morte


Oeá Oeá Oê Aô
Na tribo só se ouve o rufar dos tambores


Um dia a índia mais bela descobre Laiá
Quiva deu o seu grito de guerra
E também cercou fronteiras
Pois, três jesuítas fundaram a cruz
Homens brancos que fugiam pra fazenda Santa Cruz
Os negros trazidos da África para cá
Escondiam seus sofrimentos
Imploravam aos orixás
Possui também a macumba e o candomblé
Para levantar poeira
Na famosa capoeira

Fontes:
– Glauber Lima dos Anjos Quiva e Laiá: protagonismo indígena nas aulas de História através de uma narrativa da cidade de Itaguaí/RJ – Dissertação de mestrado, Rio de Janeiro – 2020.
– IBGE

Isabelle Brenda é nascida e criada em Duque de Caxias. Formada em História pela UFRJ, pesquisa sobre História da Imprensa no Rio de Janeiro no século XX. Atualmente, trabalha como supervisora de pesquisa no IBGE.

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