Palavras que o vento não leva

Por Jackeline Marins

Considerada a primeira mulher de grande expressão na literatura nacional, personagem marcante da nossa cultura, Cecília Meireles escreveu poemas que me marcaram e dos quais me lembro sempre, embora sejam leituras da distante adolescência…

Gosto muito da “Canção da tarde no campo”, com seus caminhos verdes em estradas após estradas, do qual me lembro ao vislumbrar as paisagens quando viajo…

Sempre digo aos meus filhos que é preciso escolher, como já dizia a tia Cecília (assim a chamo, muito íntima), e recito: “Ou se calça a luva e não se põe o anel ou se põe o anel e não se calça a luva”. Ou isto ou aquilo.

Mas, eu gosto mesmo é do Livro da solidão. Neste texto, publicado no jornal Folha da Manhã, em 11 de julho de 1948, Cecília fala que o livro que levaria com ela para uma ilha deserta seria o dicionário. É que o dicionário em si, tem um universo inteiro.

Humildemente, concordo com tia Cecília. Tanto que fiz uma resenha crítica sobre um dicionário de sociologia, no tempo da graduação, e utilizei a Cecília como ponte para as minhas ideias sobre a obra resenhada.

Dicionários são mesmo livros mágicos. Trazem para nós o exato sentido de cada palavra, nas múltiplas possibilidades de seus significados, abrindo caminho para melhor expressarmos as ideias, seja na fala ou na escrita. Não importa se cada uma das palavras é movida por amor, alegria, raiva, irritação ou tristeza.

Em meio à sociodiversidade da vida contemporânea, momento em que estamos tomando maior consciência disso, precisamos descobrir o significado de palavras que têm potencial para ferir e fazer sangrar nossos semelhantes.

Revisitar dicionários. E vamos combinar que, hoje, é muito mais fácil do que quando se recorria ao Aurélio impresso, grande e pesado. E eu falo do Aurélio, mas também poderia ser Aulete, Houaiss…

Talvez esse seja um bom caminho para derrubar preconceitos e discriminações, começando pelo conhecimento do significado de palavras representativas de um sistema de ideias que nunca deveria ter valido e que, hoje, em especial, são anacrônicas diante dos avanços alcançados pelos seres humanos nesse planeta, conectado em tempo real e cheio de alternativas de encontro.

Na Alerj, essa semana, foi votado o projeto de lei, do deputado Chico Machado, que concedeu coautoria à deputada Dani Balbi, instituindo no calendário oficial do Estado do Rio de Janeiro a Semana de Conscientização e Combate à Gordofobia.

De acordo com o Dicio (Dicionário Online de Português), Gordofobia é um substantivo feminino, que expressa “aversão a pessoas gordas que se efetiva pelo preconceito, intolerância ou exclusão dessas pessoas”.

Todas as comissões apresentaram pareceres favoráveis à matéria. O que pode ser entendido como a expressão de um Parlamento plural e diverso, como deve ser uma casa de representantes da sociedade, num ambiente democrático, em que as opiniões diferentes convivem com respeito.

O projeto foi remetido para a redação do vencido, porque recebeu uma emenda, propondo levar os eventos relativos à conscientização e combate à gordofobia para as escolas de todo o estado, uma ideia fundamental para combater também o bullying sofrido por crianças e adolescentes que não se enquadram nos padrões hegemônicos.

Mas sabe o que causa assombro mesmo? É o fato de ainda precisarmos de leis para medidas como essa, que já deveriam estar obsoletas pela evolução da humanidade.

Da mesma forma, precisamos também de um dia mundial de conscientização sobre o autismo. Gancho para falar sobre a necessidade de superação do capacitismo.

Capacitismo é o substantivo masculino, que nomeia o preconceito direcionado a pessoas com deficiência, e pode se efetivar pelo discurso de que essas pessoas são anormais ou incapazes, quando comparadas com o que é socialmente considerado perfeito ou neurotípico.

Um belo exemplo da superação do capacitismo, foi o lindo casamento desse fim de semana… a daminha, linda e maravilhosa, foi uma menininha com TEA, que entrou de mãos dadas ao seu priminho, para juntos levarem as alianças. E como era de se esperar o casamento parou e o que já estava emocionante pela aura de amor que nos envolvia, ficou sublime, pela alegria de estarmos verdadeiramente todos (todas, todes, todx) ali.

E é para mais vivências assim, que as pautas da semana passada na Alerj levavam no cabeçalho o laço de quebra-cabeças colorido, numa referência à pauta com proposições cuja temática envolvia ações destinadas a atender as necessidades de pessoas portadoras de transtornos do espectro autista.

Como o projeto dos deputados Nivaldo Mulim e Martha Rocha, dispondo sobre a implantação de centros de atendimento para reabilitação integral de pessoas portadoras do transtorno e, também, para aquelas que tenham qualquer deficiência mental.

Outra importante iniciativa apreciada foi o projeto do deputado Waldeck Carneiro propondo a adaptação de eventos culturais para a atender esse público, no caso, a realização de sessões de cinema adaptadas para pessoas com TEA e suas famílias.

Afinal, como escreveram Arnaldo Antunes, Marcelo Fromer e Sérgio Britto, na música cantada pelos Titãs: “a gente não quer só comida, a gente quer comida, diversão e arte”, porque “a gente quer a vida como a vida quer”.

E a indicação legislativa do deputado Munir Neto, solicita ao governador que envie mensagem tratando da criação do “Programa Laudo Azul”, destinado a oferecer atendimento multidisciplinar para o diagnóstico precoce do TEA e, com isso, as crianças poderão ser estimuladas com múltiplas terapias o mais cedo possível.

De todos os projetos apreciados na semana passada (33 proposições em geral), 10 tratavam de medidas relacionadas ao TEA ou qualquer outra condição que afeta a possibilidade de vida independente e autônoma, ou sua intenção fundamental era a inclusão dos diferentes.

A Comissão de Constituição e Justiça – CCJ, também realizou uma reunião extraordinária exclusivamente para apreciar pareceres a matérias sobre TEA, em respeito ao mês da conscientização sobre o Transtorno do Espectro Autista.

A pauta da CCJ incluiu 16 projetos sobre o assunto, de autores de todos os espectros políticos, dentre os quais os que propõem a substituição de sinais sonoros nas escolas – troca das sirenes que tocam alto por outro tipo de alerta; o que propõe treinamento para profissionais da educação lidarem com alunos com TEA; criação do coletivo autistas nas universidades públicas estaduais; distribuição de protetor auricular para pessoas com TEA na supervia e no metro; inclusão do TEA na lei que prevê validade indeterminada para os laudos médicos; gratuidade no transporte intermunicipal para pessoas com TEA; criação do selo Empresa Amiga da pessoa com TEA.

Os autores – Fred Pacheco, Martha Rocha, Rosenverg Reis, Tia Ju, Guilherme Delaroli, Márcio Canella, Renato Machado, Márcio Gualberto, Dani Monteiro – pertencem a partidos de espectros políticos muito diferentes. No entanto, comungam a preocupação e a ação centradas na garantia de direitos de cidadania a quem precisa dessa proteção, exatamente como devem ser pensadas as políticas públicas, as políticas de estado.

Seguindo nessa mesma direção da CCJ, a Comissão da Pessoa com Deficiência realizou uma audiência pública, com o tema: Autismo, uma realidade que precisamos conhecer. Debate necessário, no momento que o diagnóstico tem sido cada vez mais preciso e permite identificar aquelas pessoas que têm deficiências não aparentes, e que eram discriminadas e pouco compreendidas em suas dificuldades.

Penso que não aumentou o número de pessoas com TEA, mas sim, o diagnóstico mais preciso e cuidadoso identifica essas pessoas e suas dificuldades, possibilitando um atendimento mais efetivo e precoce, para lhes assegurar uma vida com mais inclusão.

O cordão de quebra-cabeça colorido identifica a pessoa com TEA, mesmo que sua aparência física, seu gestual e sua fala ou silêncio não deixem claro suas especificidades. Necessário porque o mundo não compreende uma criança TEA em crise e questiona o uso do atendimento preferencial pelas pessoas que tem condições que as enquadram na legislação, mas não aparentam, como uma medida para evitar constrangimentos desnecessários.

E, retornando à querida Cecília Meireles, mulher gigante em seu tempo, magistral em sua escrita, devemos recorrer ao dicionário para conhecer outras palavras que, talvez, nem devessem existir, porque costumam ser usadas para ferir, separar, tornar desigual, discriminar pessoas sob qualquer pretexto: racismo, machismo, misoginia, homofobia, etarismo, Lgbtfobia, lesbofobia…

Essas, designam ações que ferem. Ações que permanecem ecoando no horizonte da mente como ondas infindáveis que continuam machucando além do momento.

São as palavras que o vento não leva e que denominam o que não pode ser tolerado de forma alguma.

Jackeline Marins é Mestre em Política Social, Especialista em Administração Pública, Pedagoga, Especialista do Legislativo colaboradora do BRAVA BAIXADA.

2 thoughts on “Palavras que o vento não leva

  1. Amei Jackie! Como todos os seus artigos, atuais, imprescindíveis ao pensamento e principalmente à ação! Que possamos viver pra ver essas mudanças acontecerem de fato, em nossa sociedade.
    Obrigada pelas palavras!

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