por Jackie Marins
O olhar simplificado sobre escolhas públicas, muitas vezes é carregado do maniqueísmo que divide decisões entre boas e ruins, como se o caminho para a construção de políticas públicas inscritas em projetos e programas públicos fosse muito simples e cartesiano.
Ocorre que, nessas decisões, estão presentes interesses diversos e, como já foi dito antes, em geral são antagônicos e carregam atrás de si uma gama quase invisível de cordões e encantamentos atados às ideias que os sustentam e vão muito além da ideia de bem e mal, que vulgarmente temos em conta.
Parte do jogo democrático. Sem dramas nem chorumelas.
Resta apenas pensar como são construídos os consensos ao redor das ideias em análise para alcançar o mecanismo, legítimo instrumento dos regimes de democracia vigentes na maioria dos países ocidentais, que é capaz de dar corpo à maioria necessária para sua aprovação.
E há que se considerar que um mais um será realmente mais que dois, se puderem juntos multiplicar o número dos que comungam as mesmas ideias, construindo o consenso até que seja partilhado pela maioria, vez que no parlamento é assim que as decisões são tomadas. Sempre.
De acordo com Castoriadis, filósofo, economista e psicanalista francês de origem grega, referência do sociólogo polonês Zygmund Bauman, política é “atividade explicita e lúcida que diz respeito à instauração das instituições desejáveis e da democracia como regime da máxima auto-instituição possível, explícita e lúcida das instituições sociais que dependem da atividade coletiva explícita”.
Decisões institucionais, coletivas, baseadas em consenso e tomadas por maioria. No entanto, essa maioria varia de acordo com o tipo de matéria que está em votação, por exemplo. Vejamos, então.
Para a aprovação de um projeto de lei ordinária, em cada turno, seu autor deve conquistar os votos da maioria dos presentes. Ou seja, presentes trinta e seis deputados – metade mais um do total de setenta cadeiras na Alerj -, é preciso que ao menos dezenove representantes votem a favor do projeto para que ele seja aprovado. Nesse caso tratamos de uma aprovação por maioria simples, em dois turnos.
Depois de aprovado, o projeto é encaminhado para a sanção do governador. Sancionado vira lei. Vetado, ou seja, rejeitado todo ou em parte, pelo Chefe do Poder Executivo, retorna ao Legislativo para que a Casa decida pela manutenção ou rejeição do veto, que exige maioria absoluta de votos dos membros da Alerj, nos termos do artigo 172 do Regimento Interno.
Da mesma forma, a aprovação de um projeto de lei complementar à Constituição – PLC, exige a maioria absoluta dos votos. O que equivale a dizer que somente pelo voto de trinta e seis parlamentares, um PLC é aprovado, em conformidade com o que estabelece o artigo 179 do Regimento Interno.
Nas comissões permanentes, as votações são sempre decididas de acordo com a maioria de votos. Por exemplo, se a comissão é composta de sete deputados, precisam estar presentes ao menos quatro integrantes e se for composta por cinco, precisam estar presentes ao menos três deputados.
Sempre que há empate na decisão sobre aprovação ou rejeição de uma proposição, o presidente, tanto da comissão quanto da Alerj, é que deve proferir o voto de qualidade, ou voto de minerva, repetindo a manifestação de sua posição pela segunda vez, com o objetivo de desempatar a votação. Essa é uma situação bastante corriqueira nas comissões e é menos comum no plenário, mas também ocorre.
As proposições são identificadas por siglas compostas pelas respectivas iniciais de seus nomes: projeto de lei – PL, projeto de resolução – PR, Indicação Legislativa – IL, projeto de decreto legislativo – PDL, proposta de emendas constitucional – PEC, etc. E assim, na intimidade das tramitações, nos diálogos internos, ouve-se mais as siglas do que os nomes completos.
Esses tipos normativos, além de contarem com tramitações específicas para cada uma delas, destinam-se também a finalidades distintas:
- para sugerir a adoção de medidas a outros entes, que não o Legislativo, e que tenham dentre suas atribuições e competências constitucionais a iniciativa, é usada a indicação legislativa;
- para alterar a Constituição, o tipo normativo é a proposta de emenda constitucional, com uma tramitação completamente diferente das demais proposições;
- para sustar atos do Executivo, a Alerj pode usar o Projeto de Decreto Legislativo; etc.
Quando um tipo normativo é inadequado para dar corpo à intenção do autor, quase sempre as comissões competentes para efetivar a sua análise fazem a correção.
É o caso do parecer que manifesta opinião favorável a uma matéria, concluindo por sua transformação em indicação legislativa. Traduzindo, o parecer diz que o tema da proposição tem mérito, é relevante, mas, ao mesmo tempo, a forma é inadequada, tornando-se preciso sanar o problema, para que a tramitação prossiga até o final.
Voltando a pensar sobre o cenário em que esses tipos normativos são escolhidos, no processo decisório sobre seu prosseguimento ou não, nas discussões que se dão ao longo de sua análise retorna a ideia da visão maniqueísta sobre tais políticas.
Mas, para além da forma, é preciso cuidar do espírito das letras que animam as leis. É preciso refletir sobre a relação entre as matérias apresentadas e o efeito que terão sobre a vida das pessoas.
Especialmente num país em que as desigualdades são tão marcantes e abrem fossos entre seus cidadãos, com uns poucos para os quais nada falta e outros tantos para os quais o regime de escravidão parece não ter sido superado pela abolição, pois são ainda cativos da insegurança alimentar, da precariedade das moradias, da falta de políticas previdenciárias, de assistência ou de saúde, da impossibilidade da educação formal de qualidade e outras tantas amarras de sofrimento.
De acordo com levantamento feito por pesquisadores do Grupo “Alimento para Justiça”, integrado por pesquisadores da Universidade Livre de Berlim e duas universidades brasileiras, a UnB – Universidade de Brasília, e a UFMG – Universidade Federal de Minas Gerais, divulgado recentemente, 59% dos domicílios brasileiros passa por algum grau de insegurança alimentar, ou seja, não tem alimentos em quantidade ou qualidade necessária para garantir a manutenção de sua saúde.
Destes, 15% estão submetidos à insegurança alimentar grave, que é a situação em que uma família não consegue garantir todas as refeições necessárias e os seus integrantes são afetados igualmente, tanto os adultos quanto as crianças.
A relevância do levantamento é apontar o agravamento das dificuldades alimentares da parcela mais pobre da população brasileiras, como uma consequência indireta da pandemia, mas também como um fator que compromete a saúde de significativa parcela da população e que torna os mais pobres ainda mais vulneráveis a Covid-19.
Aplicando um olhar ampliado pelo conceito de interseccionalidade, usado pelos feminismos, para analisar a situação revelada, podemos aferir, sem medo de errar, que essa parcela de pobres é também constituída em sua maioria por negros e negras, dos quais a maioria é de famílias monoparentais, chefiadas por mulheres.
É para esses brasileiros, que o conjunto de políticas sociais portadoras de medidas vinculadas à estrutura da seguridade social – previdência, saúde e assistência social -, adquire relevância maior e torna-se imprescindível para assegurar o mínimo da proteção social necessária para a sua sobrevivência.
No Estado do Rio de Janeiro, a Lei nº 9.191 de 02 de março de 2021, instituiu o Programa Supera Rio de enfrentamento e combate à crise econômica causada pelas medidas de contenção da pandemia do novo coronavírus e dá outras providências.
A Lei, dentre outras medidas, institui um programa de transferência de renda destinada a atender a população mais pobre do estado, e contou com votação unânime. E, aberta a possibilidade de co-autoria, foram signatários da matéria além do autor original, outros 55 parlamentares.
Assim, mais uma vez, firma-se o legislativo como um espaço democrático por excelência, mas também um local em que o exercício do necropoder, apontado por Achille Mbembe, não se manifestou.

Jackeline Marins é Mestranda em Políticas Sociais, na Universidade Federal Fluminense (UFF), Pedagoga, especialista em Administração Pública, pela FGV-Rio, Especialista do Legislativo estadual e a colaboradora do BAIXADA POLÍTICA aos sábados.