Por Jackie Marins
A liturgia do cargo é bem mais que uma regra de etiqueta social e bons modos como poderiam dizer nossas avós.
Essa expressão popularizou-se com o ex-presidente José Sarney e foi cunhada com base em uma palavra originária do catolicismo (liturgia), para referir-se a um conjunto de comportamentos, condutas ou posturas a serem sustentadas por força de um cargo público ocupado e que assim o exige.
Nos dias atuais parece completamente anacrônico falar sobre código de postura, de conduta, no entanto, torna-se ainda mais indispensável nesses tempos de estresse agudo e sensibilidade exacerbada por eventos incontroláveis como uma pandemia global, com consequências inimagináveis para a maioria das pessoas em todo o mundo, se pensássemos tal cenário a um tempo não muito distante.
Hoje, além do Estatuto dos Servidores Públicos, em que direitos e deveres são elencados, a administração pública conta com uma série de regras a serem cumpridas, independentemente do vínculo que os profissionais mantêm com a instituição pública em que desempenham seu papel.
Existem também regras a serem observadas pelos representantes dos poderes do estado, autoridades constituídas, quer seja no Judiciário, no Legislativo ou no Executivo. E a não observância acarreta penalidades das mais suaves às mais graves, dependendo de cada caso.
E não estamos falando da malfadada corrupção que corrói o estado brasileiro ou de atitudes lesivas ao patrimônio público, que ocorrem a despeito das leis e regras existentes, que regulam a matéria.
Vamos nos deter no Código de Ética e Decoro Parlamentar que deve reger o comportamento dos parlamentares nas Casas Legislativas. Cabendo destacar que, cada uma tem o seu Código de Ética, ou deveria ter.
São normas de boa convivência, elaboradas para regular as relações antagônicas presentes no parlamento, onde a disputa pela prevalência de ideias e de visões de mundo é acirrada ao extremo, podendo levar a embates não tão delicados quanto as discussões entre afetos, que acontecem no recesso dos lares ou no círculo das amizades sinceras.
O Código de Ética e Decoro Parlamentar do Legislativo do Estado do Rio de Janeiro, à semelhança dos encontrados em outros parlamentos, estabelece os princípios éticos e as regras básicas de comportamento e conduta para aqueles que estejam no exercício do cargo de deputado estadual.
A finalidade primeira de tais regras é a proteção dos parlamentares no exercício de seus mandatos e a segunda, a preservação da instituição, que subsiste através dos tempos e deve ser exemplar guardiã da democracia.
O embate político-institucional sobre ideias e projetos, sobre políticas públicas, e o processo decisório em que elas se dão, não pode prescindir dos limites determinados por tais regras. É preciso que haja limites claros para as ações empreendidas na defesa dos mandatos e das ideias, bem como das palavras usadas para definição de posições.
No octógono do UFC existem regras a serem observadas. E não se trata de atividade nada delicada, mas, ao contrário, o oponente vencido na luta legítima, em geral, sai da arena com as marcas fortes da luta física pesada.
No parlamento, não. Todos devem sair incólumes das batalhas travadas democraticamente, sem arranhões de qualquer natureza, com a possibilidade de manter o clima civilizado, próprio para esses relacionamentos dialéticos e contraditórios, constitutivos do regime democrático em que vive nosso país.
Concretamente, o artigo 7º do Código de Ética e Decoro Parlamentar da Alerj, dispõe sobre os atos infracionais que caracterizam a atentado contra o decoro: perturbar a ordem das sessões, praticar atos que infrinjam a boa conduta; praticar ofensas físicas ou morais, por atos ou palavras caluniosas, difamatórias ou injuriosas a outro parlamentar, dentre outros.
Claro está que tais questões dizem respeito ao comportamento e que vão ao encontro do que estabelece a legislação penal. Ou seja, a depender da gravidade da situação em que se envolva, além de responder internamente aos seus pares, aquele que incorrer em tais faltas, fica ainda sujeito às penalidades legais em vigor.
Publicamente, todos devem se tratar respeitosamente, usando os pronomes de tratamento mais formais, como vossa excelência; senhores deputados e senhoras deputadas; senhor presidente… e assim todo o ambiente ganha, simbolicamente, os contornos protetivos que a formalidade impõe, ainda que nos dias de hoje possamos acompanhar ambientes mais amistosos, com camaradagem e respeito entre os representantes.
Respeitar os códigos de conduta, zelar pela forma de tratamento entre os pares, usar de cortesia e deferência são atitudes que parecem estar em absoluto desacordo com os tempos atuais, em que as comunicações diretas são planetárias, o acesso à informação é facultado em larga escala e os acontecimentos são instantaneamente divulgados sem possibilidade de que sejam apagados.
E caso haja uma representação contra qualquer parlamentar, a corregedoria deve agir para apurar e investigar a situação e ao conselho de ética cabe a indicação das medidas punitivas a serem adotadas, ou não, em relação aos fatos verificados, que serão encaminhados à Mesa Diretora, que submeterá ao plenário, para decisão final.
Por tais razões, as discussões e debates, ainda que pretendam referir-se a um discurso proferido por um antecessor na utilização do microfone, dispensam a nominação do autor, evitam ofensivas verbais, para que nenhuma palavra suscite o direito de resposta ou a representação contra qualquer ato impensado.
Se assim o é no que tange a palavras, imaginem as possíveis consequências contra atos que representem invasão do espaço corporal de um dos pares ou, por exemplo, o assédio moral ou sexual.
No ambiente virtual, há atualmente o entendimento de que essas mesmas regras se aplicam no que diz respeito às postagens, que deixam marcas indeléveis na história dos parlamentares e, ao contrário do que se pensava até pouco tempo atrás, aquele território imaginário não é livre. Nem de longe.
Ali, vive-se o verdadeiro “big brother” e todas as ações deixam rastros e são passíveis de localização para profissionais experientes e bem preparados.
A linha tênue que delimita o que é pertinente e o que deve ser evitado em termos de comportamentos e ações, é também o desenho do jogo democrático, que abarca um amplo espectro de matizes de pensamentos e posicionamentos políticos.
À semelhança da biodiversidade que se apresenta tanto mais saudável quanto maior é o número de espécies presentes, a sociodiversidade representa-se no parlamento, que será tanto mais eficiente, quanto maiores visões puderem estar expressas em seu interior.
Em todos, a democracia é valor caro, pois este é o mais democrático dos poderes do estado, onde, a despeito do número de votos obtidos nas urnas, cada representante equivale tão somente a um voto, na construção do consenso ou da maioria.
E em casa parlamentar, as decisões são colegiadas. Sempre. Nos grupos partidários, nos blocos parlamentares, no órgão diretivo (a Mesa Diretora), no Conselho de Ética, nas comissões e no plenário. Todas as decisões são tomadas por consenso, construído pelo agrupamento da opinião ou do posicionamento da maioria dos seus integrantes, cabendo ao presidente de cada colegiado o voto de qualidade, ou seja, aquele voto que desempata a decisão, caso seja necessário.
E tudo isso deve se dar no interior da arena política em que o piso é feito das regras do jogo democrático e as cordas de contenção são feitas de material composto pelo que estabelece o código de ética de cada casa legislativa.
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Jackeline Marins é Mestranda em Políticas Sociais, na Universidade Federal Fluminense (UFF), Pedagoga, especialista em Administração Pública, pela FGV-Rio, Especialista do Legislativo estadual e a colaboradora do BAIXADA POLÍTICA aos sábados.