Sinopse do enredo da Grande Rio para 2026: A Nação do Mangue

Justificativa

“O que fazer para não afundar na depressão crônica que paralisa os cidadãos? Como devolver o ânimo, deslobotomizar e recarregar as baterias da cidade? Simples! Basta injetar um pouco de energia na lama e estimular o que ainda resta de fertilidade nas veias do Recife”. Manifesto Caranguejos com Cérebro, Recife, Pernambuco, Brasil, 1992

De tempos em tempos, a cultura brasileira revela movimentos organizados em torno de ideias que rompem modelos, apontam novos caminhos, fazem da cena musical parte transformadora da vida social e política do país. Este enredo conta a história de um desses momentos transgressores e, ao mesmo tempo, construtores da cultura nacional.

Nas margens de Recife, nas bordas da capital pernambucana, das vozes da juventude periférica da então quarta pior cidade do mundo, brotou uma sentença simples, mas revolucionária: o mangue é vida. Antes vistos como espaços de miséria, os manguezais são ressignificados como símbolos de fertilidade, resistência e reinvenção. Com suas canções e arte, os jovens nascidos sob a lama bradaram que era das raízes-veias do mangue que pulsaria a energia vital capaz de reviver e eletrificar uma cidade “adormecida, adoecida, opaca e fúnebre”.

No próximo carnaval, a Grande Rio mergulha na história do movimento do Manguebeat e revisita esse grito. Não como lembrança, mas como urgência. Porque o manifesto lançado pelos “Caranguejos com Cérebro” nos anos 1990 segue atual. Nossas cidades continuam doentes, a desigualdade persiste e, mais do que nunca, é preciso lembrar que é das periferias que se fará ouvir os sons capazes de alterar a rota da sociedade.

Tal como o próprio mangue, responsável pela troca entre as águas doces e salgadas, entre as espécies marinhas e terrestres, o Manguebeat realiza a troca, a mistura, o encontro de múltiplas influências (e afluências). Das tradições da cultura local aos mais modernos arranjos e tecnologias da música global. Sob a liderança breve, mas decisiva, de Chico Science, consagrado como o poeta-caranguejo, os mangueboys e as manguegirls irromperam fronteiras políticas e geográficas. Inspiraram artistas de todo o país e do mundo. Fundaram suas próprias nações. E motivam, hoje, o nosso carnaval.

Daqui de Caxias, também nós rodeados pelos mangues; também nós energizados pelas margens; também nós cidade-anfíbia; vamos ecoar o grito que captamos ao nos sintonizarmos aos sons de mestre Salu, do Lamento Negro, da Nação Zumbi, do Mundo Livre e de tantos outros fundamentos do movimento: é preciso manter os estuários vivos, preservar o mangue! Basta de morte e de fome! A vida e a cultura que emergem das margens é que vão salvar a cidade!

Lá e cá, em Recife e em Caxias, nos Peixinhos e na Baixada Fluminense, em todos os cantos e margens desse país, a cultura periférica é a revolução.

Bem-vindos à Nação do Mangue.

Sinopse

“Entra, entra, entra
Senta
Bem-vinda ao novo mundo”
A Bola do Jogo, Mundo Livre S/A

Chico Science mandou nos chamar. Somos os caranguejos com cérebro evocados por Fred Zero Quatro, filhos dos homens-caranguejos de Josué de Castro, da geografia da fome, mangueboys e manguegirls das periferias. Chegamos para mudar o curso dos rios, oxigenar os estuários, injetar a cultura do povo nas veias e artérias entupidas pelo lixo, pelo abandono e pela impotência – fazer revolução.

Somos o manguebeat.

Nós da Lama: O Mangue Ancestral

“Na verdade, foram os mangues os primeiros conquistadores desta terra. Foram mesmo, em grande parte, os seus criadores”. Josué de Castro

Viemos da lama, do lodo, dos igarapés, do beijo doce em águas de sal. Somos daquela vida que se manifesta pegajosa, sufocante, desconhecida. Uma vida que atrai e afasta, se mostra e se esconde, vai e vem no ritmo das marés. Às vezes mar, às vezes rio, quase sempre lama. Estamos nos manguezais de braços entrelaçados, cipós retorcidos, galhos que cortam, espinhos, folhas secas, nós de troncos.

Nós somos nós.

Viemos de onde vêm as capivaras, savacus de coroa, jacarés de papo amarelo, muriçocas, calangos e caranguejos – bichos e homens, homens-bicho. Habitamos o mangue vivo, organismo que pulsa, filtra e fertiliza. Somos feitos de raízes aéreas, encharcadas, raízes de terra e de ar. Veias abertas. Nascemos dos mangues tingidos de vermelho-sangue, lavados no suor, banhados de vida, abençoados e protegidos pela senhora de todos os pântanos, mãe ancestral que rege a nossa natureza.

Nós das Margens: A Manguetown

“Ô Josué, eu nunca vi tamanha desgraça
Quanto mais miséria tem, mais urubu ameaça”
Da Lama ao Caos, Nação Zumbi

Aqui a vida arde como brasa. Pescamos em nossas canoas feitas de pau de bananeira, limpamos mariscos, acendemos velas, queimamos no sol enquanto lavadeiras nas margens do rio entoam cantos de lamento e proteção. Sob as pontes, somos os caboclos destemidos de Bandeira, os meninos com fome de Freire. Na beira da água, vivemos sobre palafitas, fazemos morada na incerteza e nos sonhos feitos de lama. Seres híbridos, entre o barro e a água, entre o homem e o caranguejo, entre o céu e a terra. Caminhamos sobre um chão de conchas.

Somos dos aratus, gabirus, carcarás e urubus. De Beberibe, Pina e Capibaribe, as grandes águas de João Cabral de Melo Neto, as águas que “nada sabem da chuva azul, da fonte cor-de-rosa, da água do copo de água”. Águas espessas que banham homens e mulheres, velhos e crianças, cães sem plumas. É esse o nosso rio. O rio que sabe dos caranguejos, do lodo, do fedor e da ferrugem. O rio que sabe de nós.

Estamos à margem, quase invisíveis. Corremos entre os vira-latas, brincamos com os guaiamuns, cercamos galinhas e porcos, erguemos nossos templos de reza, nossos terreiros de encanto, tomamos banho de canal quando a maré enche. Os de fora, em seus arranhas-céus, quando conseguem nos enxergar, nos veem tortos feito as raízes que nos cercam. Não veem eles que a cidade é que está torta, pobre, morta. Já os que estão dentro, na teimosia da vida diária, se veem como nós. Daqueles que amarram, apertam, abraçam, unem.

Nós das Ruas: O Mangue Festa

“Batuqueiro olha a onda
Não vá se atrapalhar
Meu batuque é forte, meu canto arrepia
Meu barco balança com as ondas do mar”
(Batuqueiro Olha a Onda – Maracatu Nação Porto Rico)

Estamos prontos.
Chegamos com a lança apontada para frente.
É essa a nossa batida.

Nós da Lança: O Manguebeat

A cidade não para, a cidade só cresce
O de cima sobe e o de baixo desce
(A Cidade. Chico Science e a Nação Zumbi)

Chico chamou.

Viemos do tempo e da história. Trazemos no peito a coragem, a raiz de Palmares, as dores e as marcas das batalhas. Nosso som é herdeiro da rabeca de mestre Salu, dos ritos do Daruê Malungo, dos ensinamentos do Mestre Meia-Noite, da batida afro do Lamento Negro, do corre nas ruas de Rio Doce, das encruzilhadas de Peixinhos, do Chão de Estrelas.
Chegamos para misturar. Somos de Zumbi, Dandara e Antônio Conselheiro. Do hip-hop, do rap e do rock. Embolada, coco, cordel e ciranda. Samba e metal. Baque solto e baque virado. Somos Josué e Solano, Gonzaga e Capiba, Vitalino e Brennand, Fred e Mau, Lia e Fulozinha, Benjor e Du Peixe, rio e mar, lama e caos. Somos passado e futuro, memória e sonho. Nossos caboclos têm a lança certeira.

Uma antena cravada na lama nos deu percepção e direção. Recebemos e transmitimos; aprendemos e ensinamos. Temos o tempo que foi e o que ainda virá. Fizemos das margens, centro. Despertamos uma Recife adormecida e cansada, ligamos a cidade nas tomadas, fizemos barulho e revelamos a vida das gentes escondidas nos mangues.

Nosso som penetrou nos rios, nas casas, nas almas e nos corações dos nossos.

Eu vim com a Nação Zumbi
Ao seu ouvido falar
Quero ver a poeira subir
E muita fumaça no ar
Cheguei com meu universo
E aterriso no seu pensamento
(Mateus Enter – Nação Zumbi)

Desorganizamos para organizar, organizamos para desorganizar. Espalhamos o caos. Do caos, a lama vence! Transformamos a arte, a música, a literatura, o teatro e o cinema. Conectamos a cidade com toda a potência marginal que faz revolução. Cantamos com os poetas do povo, revolvemos a lama, marcamos nossos territórios, explodimos os maracatus atômicos. Refizemos nós.

Ganhamos o mundo.

Nas raízes sagradas do mangue, fundamos a nossa nação.

Nós do Mundo: O Antromangue

“E com as asas que os urubus
Me deram ao dia
Eu voarei por toda a periferia”
Manguetown, Nação Zumbi

Nossa nação é a nação de Brasília Teimosa, Coelhos, Favela do Leite, Ilha de Deus. É a nação de Jardim Gramacho, Saracuruna, Imbariê, Capivari. Uma nação de periferias. Que junta a potência do som das alfaias e a fúria eletrônica do Manguebeat aos tambores invocados e à garra do povo da Baixada. Recife e Caxias, cidades anfíbias, cidades irmãs, nós atados. Entre troncos, galhos, urubus e caranguejos, somos o homem parido no mangue e seus mundos livres.

“A tecnologia do povo é a vontade”, anunciou a Nação Zumbi.

A Nação do Mangue – o Antromangue idealizado por Chico Science – é a nação dos que festejam como resistência, os que dançam em volta da roda, batem seus tambores, bebem suas cervejas antes do almoço, pensam melhor, pulsam com as caixas de som, rompem as fronteiras do mundo, creem na arte, na ciência e na natureza das coisas, vestem-se como reis e rainhas, beijam seus beijos, amam seus amores, fazem carnaval, brincam quando têm que brincar, brigam quando têm que brigar, celebram a vida e, do lodo entranhado nos corpos, erguem e honram seus impressionantes castelos de lama.

Aguardem: uma nova civilização brotará dos mangues.

Saluba Nanã!

Salve Chico Science, a Nação Zumbi e a utopia dos mundos livres!

Viva o carnaval e seus universos de festa, luta e afetos!

Carnavalesco: Antônio Gonzaga
Textos e pesquisa: Antônio Gonzaga, Jader Moraes e Renato Lemos

BIBLIOGRAFIA

Livros e artigos

ARAUJO, João Mauro. Mangue beat, a arte que veio da lama. Problemas brasileiros, 381: 2-9 p., Maio/junho 2007.

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