A Gratidão e o Quarteto Fantástico

Por Jackeline Marins

Sentimentos nobres movem o mundo em direção a caminhos melhores para a humanidade.

Pensando na gratidão assim, como define o dicionário, “reconhecimento de uma pessoa por alguém que lhe prestou um benefício, um auxílio, um favor; agradecimento”, podemos ver um sentimento agigantado e muito distante da realidade.

No entanto, fato é, que há pessoas capazes de transformar o mundo de inúmeras vidas, sem terem a exata dimensão de seu feito. Muitas vezes, são pequenas atitudes.

Outras tantas, são batalhas para resolver problemas vividos na pele e, sem que alguém tivesse pensado em alternativas antes, guerreiam buscando as soluções necessárias.

Dia 2 de abril é o Dia Mundial de Conscientização sobre o Autismo. Essa data foi estabelecida em 2007, com o objetivo de informar a população sobre o autismo, como forma de reduzir a discriminação e o preconceito sofridos pelas pessoas afetadas pelo TEA – Transtorno do Espectro Autista, conforme informação disponibilizada pelo Ministério da Saúde – para saber mais busquem a biblioteca de saúde, no site oficial.

Vamos voltar um pouco no tempo… nos idos dos anos de 1980, quando terminava o antigo curso normal (Podem rir… fui normalista. Assim era chamada a estudante de segundo grau, que se preparava para ser professora primária. Riam. Estou às gargalhadas aqui. Mas esse fio é de outra história), o livro de referência para aprendermos sobre uma das dificuldades de aprendizagem na infância, tem o título “Dibs, em busca de si mesmo” (traduzido do inglês Dibs in Search of Self), que foi publicado em 1964.

Sua autora, Virginia Axline, psicóloga clínica americana, narra as sessões de ludoterapia durante um ano, em que atendeu um menino que, a despeito da família em condições de lhe oferecer ricas experiências educativas, não falava, não brincava, vivia perdido dentro de si mesmo, sem interação social, com acessos de raiva e uma inteligência acima do normal.

No livro, ela descreve um quadro clássico de autismo. Ou, em linguagem atual, um caso de TEA – Transtorno do Espectro Autista -, nível 3, ou seja, autismo severo. Há outros dois níveis, conhecidos como “leve” e “moderado”, cuja classificação parte das necessidades de suporte que o indivíduo necessita, mas de leve no sentido de ser mais fácil de lidar não tem nada.

No Brasil, existe a Lei federal nº 12.764, de 27 de dezembro de 2012. É a Lei que institui a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista. Conhecida como a Lei Berenice Piana.

Fazendo um resumo bem enxutinho dessa história, Berenice é mãe de três filhos e o mais novo, um menino autista, exigiu estudos autodidatas dessa mãe para compreender o que acontecia com seu filho, que passou a ter o desenvolvimento comprometido, a partir dos 2 anos, e todos os médicos o classificavam como uma criança neurotípica.

Ou seja, uma criança “normal” como se dizia até o século passado. Uma criança que, apesar dos relatos de sua mãe, foi considerada com desenvolvimento e funcionamento neurológico típico, dentro dos padrões regulares. Uma criança funcional.

Aos seis anos, tudo mudou, por força dos estudos de Berenice, o diagnóstico de seu filho chegou, com médicos o identificando como uma criança neuro-atípica ou neurodivergente, ou seja, com autismo.

As alterações neurológicas ou de desenvolvimento variam muito e, quando não se trata de autismo severo, o diagnóstico precoce ainda é um caminho de enormes dificuldades.

Por isso, Berenice lutou para que o autismo fosse reconhecido como uma deficiência e, assim, os indivíduos neuro-atípicos ou com autismo pudessem usufruir dos mesmos direitos que os portadores de outras deficiências já acessavam.

Nossa sociedade é diversa como a natureza que nos rodeia. Tanto, que Carlos Rodrigues Brandão, no seu livro As Flores de Abril, denomina essa variedade de “sociodiversidade”, num país de megadiversidade ambiental. Dizendo de maneira geral, ele prossegue na comparação, dizendo que os ecossistemas mais ricos são aqueles em que a diversidade de espécies presentes é mais alta.

Hoje se sabe que no Brasil, cerca de 2 milhões de pessoas vivem com autismo. No mundo todo, de 1% a 2% da população é composta por autistas.

Isso significa que esse enorme contingente de pessoas convive com dificuldades cotidianas que geram necessidades de adequação enormes nas famílias, na vida escolar, na sociedade em si, para que esses indivíduos tenham suas necessidades atendidas e não sejam excluídos ou discriminados.

Na maioria dos casos, essas crianças, adolescentes e até mesmo adultos, passam anos sofrendo com impossibilidades e sem compreenderem o que se passa com elas até que o diagnóstico chegue, não para trazer uma etiqueta separatória, mas para oferecer novas possibilidades e direitos até então negados.

Chamados de Anjos Azuis, por alguns grupos, essa denominação vem sendo veementemente rejeitada, porque nossos autistas não estão na condição de angelitude celestial, que dispensa cuidados e suportes cotidianos ou a luta extenuante pela garantia de seus direitos.

E mesmo o autismo leve, para quem vive essa realidade não é nada leve ou suave. São crises, dificuldades de comunicação assertiva que geram os mais variados conflitos sociais na escola, nas famílias, com os pares; comprometimentos cognitivos; incapacidade de compreensão de sarcasmo, sátira, falas figuradas; dificuldade de ordenamento mental, entre outras tantas características que variam de indivíduo para indivíduo.

Voltando à Lei Berenice Piana, sua conquista estabelece o direito dos autistas ao diagnóstico precoce, a tratamentos e terapias adequados, ao fornecimento de medicamentos pelo SUS, ao acesso à educação inclusiva e que respeite as necessidades educativas individuais, à proteção social e ao trabalho em igualdade de oportunidades.

Com a lei, os autistas passaram a ser incluídos na Lei 13.146, de 2015 – Estatuto da Pessoa com Deficiência, tendo reconhecida a deficiência e o direito a atendimento prioritário, assim como nas normas internacionais das quais o Brasil seja signatário, como a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência.

São avanços muito importantes, que abriram portas para que outras crianças e famílias pudessem trilhar caminhos menos pedregosos. Mas, ainda há muita luta pelo caminho.

As escolas precisam se preparar melhor para lidar com todos os estudantes em sua neurodiversidade. Os estudantes precisam ser melhor informados sobre as diferenças que existem entre eles mesmos.

E as famílias extensas precisam compreender que a diversidade do neurodesenvolvimento existe e mesmo para aquelas crianças que não aparentam, o autismo pode estar presente e não significa uma condenação. Mas sim a necessidade de mais compreensão e ampliação da visão de mundo.

Nesse sentido, os autistas estão aqui para nos ampliar horizontes, por sua sinceridade desconcertante, seu riso genuíno e sua verdade intransigente, que obrigam seus pais e mães, irmãos, primos, amigos, professores e cuidadores e se verem a partir dessa lente.

Ah! E o Quarteto Fantástico?

Aquela equipe de heróis das HQs, de Stan Lee. Esses personagens aparecem aqui, porque costumo chamar meus filhos de quarteto fantástico, por óbvio que são quatro.

Só que nós tiramos a invisibilidade da nossa menina real, para lutar por seus direitos à inclusão, ao atendimento multidisciplinar especializado, à uma escola que a auxilie a conquistar seus sonhos de futuro, projetando um campo de força para que ela tenha um futuro maravilhoso e o autismo seja apenas uma das suas características únicas.

Há poucos meses, depois de longos anos em busca do diagnóstico correto, sabemos que nossa menina é autista.

Gratidão imensa à Berenice Piana, pelas conquistas deixadas para nós, que temos o quarteto fantástico. O quarteto dos sonhos.

Jackeline Marins é Mestre em Política Social, Especialista em Administração Pública, Pedagoga, Especialista do Legislativo colaboradora do BRAVA BAIXADA.

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