O avesso do bordado

Por Jackeline Marins

Por feliz coincidência, ‘O Avesso do Bordado’ é o título da biografia do maravilhoso Marco Nanini, escrita por Mariana Filgueiras, que pesquisou a fundo a trajetória brilhante do ator. Mas, aqui, não estamos a falar desse ícone da dramaturgia brasileira.

Por outra feliz coincidência, o título é também usado por Ana Cecília Rocha Veiga, para quem “o avesso do bordado é uma delicada alegoria para a nossa vida”.

E quem já bordou algum dia sabe o que é a a frente e o verso dos bordados (risos em profusão, porque essas coisas de antigamente povoam a minha mente e fazem lembrar das minhas avós… mas essas são outras histórias).

Bordar sempre exige muito capricho para fazer os dois lados quase iguais, só pra provar o quanto é boa a bordadeira.

Frente e verso do bordado são mesmo uma boa e sutil alegoria do cotidiano vivido por nós, dentro e fora de casa, porque ninguém é 100% perfeito, como bem escreveu a Ana Cecília. E, sim, todo mundo relaxa quando chega em casa e desveste os sapatos, o sutiã, a gravata, o figurino e o personagem usados na cena pública da vida.

Esse avesso, não tão bonito quanto o que é exibido, fica guardado, oculto sob a beleza encantadora da frente do bordado, numa analogia muito significativa para as vivências na intimidade do lar ou na imensidão das ruas onde são cumpridas as obrigações corriqueiras da vida, para dos adultos, responsáveis pelos inesgotáveis boletos (que sempre vencem no final).

Pelas exigências da vida moderna, os adultos se veem cada vez mais obrigados a trabalhar para produzir mais e melhor na busca pelo sucesso material, num sistema de vida que cria necessidades ilusórias ou a obsolescência programada dos produtos para incrementar o consumo.

O impacto do excesso de trabalho na saúde mental e emocional das pessoas e na vida familiar é tão intenso, que chega a ser determinante de problemas sociais e de saúde pública, que vem sendo estudado no meio acadêmico ao redor do mundo. Os casos de burnout que o digam. Mas não é só.

Soma-se a essa realidade, a transformação na comunicação e no acesso a recursos tecnológicos, que levaram pro mundo digital a vida social. Um processo que não é recente. Vem se processando na sociedade desde o século passado, mas se intensificou na última década.

Como sou jovem há mais tempo que um bocado de gente, tenho experimentado a comunicação e a interação digitais desde o ICQ e as salas virtuais de bate-papo, passando pelo Orkut, até as redes sociais de hoje, onde a espetacularização da vida parece ter alcançado um patamar tal, que as pessoas passaram a ser obrigadas a exibir um estado de felicidade infinita e permanente.

E, no outro extremo, pessoas são canceladas e ponto, como se tivéssemos o poder de Tanos para, com um estalar de dedos, eliminar 50%, só que não é de maneira aleatória como no filme.

Como se nos fosse dado o poder de selecionar o que deve ou não permanecer, continuar a existir nos mundos digitais, como uma espécie de apedrejamento moderno, semelhante àquele que foi evitado por Jesus, com a ponderação: “que atire a primeira pedra aquele que nunca pecou”.

A proposta de viver como se não houvesse o avesso do bordado e a vida fosse um comercial de margarina ou uma eterna cena cinematográfica ou teatral de felizes para sempre.

Para pessoas maduras, observar esse roteiro de ficção de uma realidade permanentemente feliz e perfeita das redes sociais em contraponto com suas vivências cotidianas nada glamorosas, traz consequências para a autoimagem, afetando inclusive a saúde mental, a autoestima. Imagine nas crianças, adolescentes, jovens e pessoas com delicado equilíbrio emocional, o quanto não impactam.

A baixa tolerância à frustração, à dor emocional são ingredientes que se somam num caldeirão, fervido em fogo de discriminação e preconceitos que acabam fomentando o desejo de vingança ou justiçamento, como forma de eliminação rápida e direta dos “causadores” destas feridas.

Assim, indo até as escolas, pensando nas tragédias que estão descendo sobre nosso patrimônio mais sagrado – as crianças, devemos mesmo utilizar recursos tecnológicos de monitoramento para controle, botões de pânico para socorro imediato, aumentar o efetivo de segurança dentro e fora das escolas, reforço das rondas escolares… medidas que poderão fazer frente aos eventos, com mais chance de sucesso para quem deve agir nesses casos. Resposta imediata e pronta para acontecimentos irracionais e incompreensíveis para nossos olhos perplexos.

Mas, é fundamental, imprescindível, essencial, primordial, crucial, capital, substancial e todos os possíveis sinônimos existentes somados, que a saúde mental de nossas crianças seja tratada. Seja encarada como algo sério.

E não só as crianças. Os profissionais da educação estão adoecendo. Recebendo descargas emocionais, que culminam em quadros somáticos dos seus corpos físicos.

O avesso do bordado está exposto nas escolas. O emaranhado de linhas dispostas do que vivenciamos sem muita consciência, está se acumulando e transbordando do verso do pano, o que não está bem arrematado está à vista. Está de fora como uma fratura exposta.

Na sociedade como um todo, será bom resgatar a gentileza, observar e não naturalizar violência que poderia passar despercebida por olhares menos atentos, porque tem uma outra forma de ser praticada, mais simbólica e menos ostensiva.

A ONU define cultura de paz como o conjunto de valores, atitudes, modos de comportamento e de vida que rejeitam a violência e apostam no diálogo e na negociação como forma de solucionar problemas ou mesmo prevenir situações de conflito. Mas não se trata de uma paz que encobre os problemas, os conflitos, mas uma paz que se produz pelo tratamento das suas causas.

Implantar uma cultura de paz nas escolas pode ser um bom caminho. Assim como a adoção de um modelo de aprendizagem colaborativa, em que o aluno tem papel ativo no processo de construção do conhecimento através de discussão e interação com seus colegas e professores. Em outras palavras, como Paulo Freire defendia, são mais que meros depositórios de conhecimentos, são sujeitos dessa construção realizada em trocas com seus pares e professores.

Falando da Alerj, numa passada rápida de olhos, vê-se que, só no mês de abril, foram apresentados projetos de lei com medidas que tentam dar uma resposta aos ataques nas escolas e prevenir que aconteçam novamente.

Alguns tratam do mesmo tema e a maioria dispõe sobre segurança física e estrutural das escolas:

  • cria programa estadual de segurança nas escolas;
  • propõe a instalação de detectores de metal e equipamentos de monitoramento; dispondo sobre a instalação de botão de pânico;
  • realizar treinamentos com simulação de como agir em caso de ataque;
  • criar um dia de conscientização sobre segurança nas escolas;
  • criar um conselho de segurança escolar.

Um deles, preocupa-se com a linha que borda o tecido e propõe criar um programa de atenção psicossocial para a comunidade escolar – alunos, professores, inspetores, merendeiras, pais… quem sabe seja esse o caminho, para repararmos melhor se acontecer da linha não estar seguindo tão arrumadinha no avesso do pano.

Unir esforços e mãos para bordar cenários mais colaborativos, cooperativos e menos competitivos, tecidos com tanto cuidado e esmero em meio a uma cultura de paz. Agir com olhos tão atentos, que haverá dificuldade em saber de que lado está a frente ou o verso, porque o avesso do bordado receberá a merecida atenção.

Jackeline Marins é Mestre em Política Social, Especialista em Administração Pública, Pedagoga, Especialista do Legislativo colaboradora do BRAVA BAIXADA.

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